Blog do KinG: julho 2022

Memórias

"O ar era úmido, denso, pesado.

Estava muito escuro para distinguir tudo ao primeiro olhar.

Enormes estantes iam do chão até onde a vista alcançava. Tantas quanto conseguia contar. Se perdiam num emaranhado de prateleiras e gavetas.

Recordava-se vagamente do local, mas ao andar por entre os corredores pouco iluminados reconheceu onde estava: dentro da sua própria cabeça.

Caminhando lentamente absorvendo a informação, lembra o que significa aquele local.

"Não estou só dentro da minha cabeça. Estou no local das minhas memórias."

Olhando mais atenciosamente começa a distinguir esferas dispostas por todas as partes. 

Cada uma com uma luz leitosa dentro espiralando tranquilamente.

"Por que estou aqui?"

Aproxima a mão da esfera mais rente a si e uma alegria súbita invade seu ser antes de entender o que continha naquele círculo brilhoso parado à frente.

Um mar se abriu! Calor, cheiro de sal, areia em seus pés!


Remove a mão rapidamente com o coração saltando. 

Não lembrava que ir à praia trazia uma sensação tão forte de felicidade.

Curioso, avança a mão até, finalmente, encostar no globo.

"Vem! Corre! Você não me pega!"

Tinha 4 anos, corria desesperadamente atrás de um colega que tinha feito há poucos segundos enquanto brincavam de castelo de areia quando uma onda desajeitada derrubou as torres da guarita.

O mar estava calmo, andorinhas voavam baixo. Se viu correndo. E correu. Correu sorrindo. Correu com o peito cheio de ar marinho. Correu, correu e correu.

Soltando a mão da clara esfera em azul, lágrimas chegaram aos seus olhos. Uma energia em seu peito trouxe uma sensação de nostalgia estupenda.

Quando pensou em voltar algumas décadas no tempo novamente, sua visão periférica mostra uma luz vermelha à direita de onde estava.

Uma esfera, semelhante a que acabou de levá-lo à praia brilhando com um intenso tom rubro.

Caminha até lá rapidamente sem prestar atenção aos outros círculos ali dispostos.

Essa parecia mais viva que as demais. Era um vermelho forte, intenso, como fogo!


Intrigado, aproxima-se e estica sua mão para ela.

Frações de segundos após a aproximação, veio a sensação.

Uma dor lancinante envolve seu peito, seu coração, sua razão.

Um borrão de imagens corre por sua vista tão rápido quanto a adrenalina corre por suas veias e tudo, enfim, se torna claro.

Um grande sofá cinza se materializa. Dois corpos estavam ali dispostos deitados, próximos um ao outro.

Tão próximos quanto a física permite.

Ela era pequena, branquinha, cabelos pretos longos, nariz afilado, boca diminuta, delicada, cheirosa, risonha.

As sobrancelhas eram bem feitas, mesmo sem maquiagem, seus lábios estavam avermelhados, sua face tinha cor. Era muito bela!

Ele ali se sentia seguro, nos braços dela. Ela estava com uma roupa leve, de um algodão macio. Tinha um perfume suave, doce. Sentia o corpo flutuando a cada suspiro lento com ela em seu peito.

Um televisor passava um filme prestigiado. A trilha era calma, ritmada, amorosa. Ecoava pelo cômodo e chegavam aos seus ouvidos tão audível quanto as batidas dos corações dos dois que reverberavam de forma síncrona. 

Consegue ouvir uma pergunta sendo cantarolada: ♪ Tell me something, girl! 
Are you happy in this modern world? Or do you need more? ♫

Apesar de clássico, ele nunca tinha assistido o longa. Tentava prestar atenção a cada detalhe, mas a concorrência era forte.

O sorriso dela ressoava de maneira clara, meiga, acalentadora.

Seu cabelo solto, liso, fino grudava em sua face.

Seus dedos se entrelaçavam numa mescla de carinho e respeito.

As mãos em seu peito.

Um olhar quente, olhos castanhos penetrantes, tímidos, famintos sorriam de volta.

Contemplando aquele olhar encabulado, conseguiu prever os próximos passos.

Ela posicionou o cabelo de maneira desajeitada atrás da orelha, escondeu o sorriso acanhado, as maçãs do rosto róseas e perguntou finalmente após um pigarro pra limpar a garganta: "O que foi?!"

Com olhos brilhando e um notável tom de nervosismo na fala, ele se pegou pronunciando alto: "Não foi nada. É que você é muito linda!"

O coração aos saltos e a respiração dificultosa o fez voar de volta com todas as sensações de cheiros, sons, luzes misturando e fundindo-se em sua mente.

Quando acordou não sabia bem se tinha dito de maneira límpida, se era coisa da sua cabeça ou se a esfera da memória o tinha pregado uma peça.

A única coisa que sabia é que aquela memória ainda estava muito viva.

E muito doída."